Hora da virada contra a corrupção
No apagar das luzes de 2015, o governo federal editou a Medida Provisória (MP) 703, que afronta a Constituição, assim como tratados internacionais de que o Brasil é signatário. A Convenção da OCDE em seu artigo 5.º é explícita: não se pode alegar dano à economia para não punir empresas corruptas.
Com o discurso de proteger empregos e a economia, porém, o governo, abortando o democrático processo legislativo (PL 3636), editou a MP 703, que enfraquece o TCU e a incidência da Lei de Improbidade, permite que empresas suspeitas de corrupção (que podem ter sido doadoras do governo) celebrem suaves acordos de leniência com a AGU e a CGU (órgão do governo) sem fiscalização do Ministério Público, garantindo-lhes redução de multas, acesso a dinheiro do BNDES e atestado de idoneidade para participar de licitações. Isso no momento em que se revela que o Brasil piorou sete posições no índice de percepção da corrupção da Transparência Internacional de 2015, queda só igualada por Lesoto. Na melhor posição global, a tetracampeã Dinamarca. No topo da América do Sul, o Uruguai (21.ª posição). O índice revelou também que dois terços dos países avaliados têm altos índices de percepção de corrupção, mas, ao mesmo tempo, mais países melhoraram de posição.
Apenas dois dias depois da divulgação dos índices, todos os vereadores de Centralina (MG) foram presos pela prática de atos de corrupção. O volume de corrupção perceptível no Brasil hoje é notoriamente muito grande, envolvendo pessoas poderosas e valores vultosos, mas o total é impossível saber, já que a maior parte não vem à tona, compondo o que se chama na criminologia de cifra negra (contingente de crimes não comunicados).
Por incrível que possa parecer, a situação poderia ser muito pior. E se nada estivesse sendo investigado? E se não houvesse processos nem punições? E se ninguém do andar de cima tivesse sido preso? Apesar do nosso secular patrimonialismo, cada vez mais os ex-intocáveis estão sendo alcançados pela lei e pelo sistema de Justiça.
A queda no ranking pode ser creditada, pois, em grande medida, à exposição da sujeira decorrente do trabalho vigoroso de Ministério Público, Polícia Federal e Judiciário na Operação Lava Jato, o que reafirma a necessidade de fortalecimento permanente das instituições de controle da corrupção, aprimoramento das políticas públicas anticorrupção, diminuição das oportunidades e educação como instrumento preventivo. As verdades secretas que vêm sendo reveladas estão expondo entranhas pútridas das esferas pública e privada, o submundo das nomeações para cargos de confiança e do loteamento da máquina pública para satisfazer as fomes infinitas do poder e da barganha, nela sendo instalados aparentados ou apaniguados sem merecimento objetivo e muitas vezes para saquear o erário, na contramão dos princípios da eficiência, da moralidade, da impessoalidade e do interesse público.
Em julho último, noticiou-se que o Brasil, no nível federal, contava com quase 24 mil ocupantes de cargos de confiança, enquanto a França tinha cerca de 4.800 e os EUA, 8 mil. Ou seja, apesar da estagnação econômica, do decréscimo de nossa posição em relação à competitividade global e do aumento da percepção da corrupção, a máquina é inflada continuamente, sendo de se pensar em instituir limites legais para bloquear esse inchaço, exigindo-se que as nomeações sejam meritocráticas e calcadas na eficiência, com total transparência quanto ao número de pessoas nomeadas, seus vencimentos, seu currículo, para permitir a fiscalização da sociedade, como se faz, por exemplo, na França, onde há uma lei de governança pública.
Em 2014, aliás, depois de ser barrado pela Lei da Ficha Limpa (descumprida pelo partido, que indevidamente concedeu a legenda), em Roraima, Neudo Campos, líder nas pesquisas, quis transferir sua posição política à esposa. O mesmo fizeram José Riva em Mato Grosso e José Roberto Arruda no Distrito Federal. Das três esposas, só Suely Campos foi eleita – aliás a única governadora eleita naquele pleito. Na primeira semana de mandato nomeou 19 parentes para o governo.
A transparência, vital no controle da corrupção, é apontada pelo cientista político Robert Klitgaard, ao lado da discricionariedade, como componentes da equação em que mais transparência e menos poder discricionário resultam em menos corrupção.
O Brasil está atrasado. Na Suécia, o terceiro país menos corrupto do planeta segundo a Transparência Internacional, há uma Lei de Acesso à Informação desde 1766 (a nossa entrou em vigor em 2012). Há muita opacidade aqui. Recentemente, tentou-se impedir o acesso a documentos públicos relacionados às obras do Metrô em São Paulo e ao conteúdo de boletins de ocorrência policial. Não são apresentados publicamente os valores e empresas recebedoras de dinheiros do BNDES.
Em nome da transparência, no entanto, em supostas “prestações de contas” gasta-se muito dinheiro público com verdadeiras campanhas publicitárias que visam, a bem da verdade, a cultivar o personalismo político e garantir a perpetuação no poder. Precisamos limitar esses gastos legalmente. As prestações de contas precisam ser sóbrias e simples, com ênfase nos meios virtuais.
A queda de sete posições parece desesperadora, mas pode ser justamente o oposto. Pode estar nos entregando a histórica oportunidade de perceber a necessidade de construir um novo sistema que previna e coíba os abusos de poder, puna com rigor e exemplaridade, com processos ágeis, sem intocáveis, com transparência total. Com empresas pactuando a integridade. Com cidadãos conscientes e unidos, que juntos poderão construir uma nova página na História do Brasil.
Cidadãos conscientes e unidos poderão construir nova página na História do Brasil
*Roberto Livianu é promotor de Justiça, doutor em Direito pela USP, e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção