A corrupção perdeu para a justiça
Ao condenar à cadeia os corruptos envolvidos no mensalão, o Supremo Tribunal Federal revoga uma vergonhosa tradição
A impunidade dos poderosos prevaleceu sobre a Justiça no Brasil desde Pedro Álvares Cabral. ""Cadeia é para os pobres", repetiram os brasileiros de geração a geração. Parecia uma lei natural, um dado da vida, uma vocação invencível do país de povo cordial e cordato. Isso acabou. O ano de 2012 terá seu lugar marcado na história por ter sido aquele em que o Brasil dos honestos começou a virar o jogo sobre o dos desonestos. Foi em 2012 que os réus do mensalão – políticos de alto calibre, entre eles um poderoso ex-ministro-chefe da Casa Civil, banqueiros e empresários – foram condenados e mandados para a cadeia. Foi um processo que até sua reta final enfrentou a incredulidade da maioria dos brasileiros. Para sermos exatos, até que as penas fossem lavradas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) passaram-se sete anos, seis meses e dez dias.
Foi em maio de 2005 que Veja apresentou aos seus leitores um retrato acabado de como a corrupção estava arraigada até mesmo nos escaninhos mais obscuros da máquina pública brasileira. Na reportagem, o servidor Maurício Marinho, então chefe de um dos departamentos dos Correios, é flagrado em vídeo no exato momento em que embolsava uma propina de 3000 reais paga por dois supostos empresários interessados em assinar contratos com a estatal. Marinho não atuava apenas para si próprio. Ele agia em nome de um partido, o PTB, que o indicara ao posto. Era um dos milhares de afilhados de políticos nomeados para cargos de confiança justamente a fim de levantar dinheiro de forma escusa para seus padrinhos e respectivas legendas. A imagem de Marinho, que ilustra a página ao lado, puxou o primeiro fio das malhas de corrupção tecidas pelos mensaleiros, os protagonistas do maior esquema de corrupção política da história do Brasil.
Outros pontos da trama seriam revelados menos de um mês depois, quando o deputado Roberto Jefferson, o presidente do PTB a quem Marinho prestava contas, disse à Folha de S.Paulo que o governo do presidente Lula pagava mesada a parlamentares em troca de apoio político, subornando-os com dinheiro desviado dos cofres públicos, em uma operação que tinha como QG central a Casa Civil da Presidência. No país da corrupção, disse Jefferson, a corrupção se tornara uma prática de governo. Foi nessa entrevista da Folha de S.Paulo que o termo "mensalão" apareceu pela primeira vez no vocabulário político brasileiro. Apareceu para não sair mais e se tornar sinônimo de corrupção.
Jefferson revelou o nome dos mensaleiros, definindo quem foram seus mentores, operadores e beneficiários diretos. A partir dali. a imprensa séria do Brasil passou a cobrir com afinco os desdobramentos do caso. As denúncias resultaram na demissão de José Dirceu, que deixou a chefia da Casa Civil para se "defender na planície", expressão que cunhou para se referir à sua volta ao plenário da Câmara, deputado federal que era, eleito por São Paulo.
A abertura de uma CPI no Congresso resultou na cassação do mandato de três deputados – entre eles Dirceu, a quem a planície refugou com a mesma ênfase do Planalto. Apesar das cassações, a impunidade ainda estava vencendo, pois a pouquíssima gente parecia viável que o processo político tivesse seguimento na Justiça.
Mas o empuxo modernizante do Brasil já estava, naquele momento, bem mais forte que as forças reacionárias que tentavam evitar o progresso institucional do país com a tese de que o mensalão fora uma "farsa". O processo seguiu seu curso. A Procuradoria-Geral da República fez a peça acusatória que foi acolhida pelo STF. Mesmo assim, em meados deste ano, a impunidade ainda parecia estar com uma cabeça à frente da sede de justiça do povo brasileiro. Afinal, o que poderia uma peça acusatória escrita em juridiquês impenetrável contra a palavra do político popular e carismático que, ao sair da Presidência, disse que iria se dedicar a provar a "farsa do mensalão"? Nesse momento a impunidade avançou várias casas no tabuleiro.
A sensação de impotência perdurou durante as primeiras sessões do Supremo Tribunal Federal dedicadas a julgar os réus mensaleiros. Afinal, o STF havia em sua história punido apenas cinco políticos por corrupção. Com o desenrolar do julgamento, transmitido ao vivo pela televisão, os brasileiros foram aos poucos recuperando a esperança na eficiência da Justiça. Os poderosos estavam, pela primeira vez na história brasileira, perdendo uma batalha judicial de monta. A impunidade, como ocorrera com o dragão da inflação no começo dos anos 90, descobria que não era invulnerável no Brasil. Durante 49 sessões de julgamento realizadas desde 2 de agosto, os ministros do Supremo rechaçaram a tese petista de que tudo não passara de um grande esquema de caixa dois. Mesmo pressionados pelo ex-presidente Lula, os ministros disseram que o governo do petista comprou apoio político no Congresso e desviou dinheiro público para financiar essa operação. Os votos sempre censuravam, em linguagem clara, as roubalheiras e traficâncias realizadas na administração pública. Disse memoravelmente o ministro Celso de Mello, decano da corte:
"Esse processo revela um dos episódios mais vergonhosos da história política de nosso país, pois os elementos probatórios que foram produzidos expõem, aos olhos de uma nação estarrecida, perplexa e envergonhada, um grupo de delinqüentes que degradou a atividade política, transformando-a em plataforma de ações criminosas".
Com a definição, na semana passada, das penas dos últimos 25 condenados, de um total de 38 réus, o STF livrou o Brasil daquela que parecia sua sina, a de tolerar a corrupção e nunca prender gente rica e poderosa que comete crimes. Eis um legado incontestável. De agora em diante, a cadeia não será mais reservada só para pessoas comuns, sobretudo os pés-rapados, flagradas em delito. A obra meritória do STF está completa.
Algumas questões acessórias ainda restam. Os advogados têm alguns instrumentos legais de que podem lançar mão para tentar diminuir as penas de seus clientes. Mas ninguém espera que, mesmo bem-sucedidos nesses trâmites, eles consigam obter reduções dramáticas nas doses de punição aplicadas. Ainda precisa ser decidido também se os réus condenados que exercem, cargo eletivo perdem automaticamente sua cadeira. Esse é o entendimento da maioria dos ministros do STF. Alguns defendem a tese de que os deputados federais condenados devem preservar seu mandato até serem julgados – e. eventualmente, cassados – pelos seus pares na Câmara dos Deputados.
Ainda está pendente a decisão sobre a questão mais aguardada pelos brasileiros: quando serão presos e onde cumprirão a pena os condenados ao regime fechado. Se depender de Roberto Gurgel, procurador-geral da República, a ordem de prisão deve ser dada e cumprida imediatamente. O mais provável, porém, é que os réus só serão presos depois do julgamento dos recursos. Perdeu a impunidade. Venceram as instituições.
Fonte: Veja em 04/12/2012