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A mobilidade dos movimentos sociais

06 de março de 2014 - 11:09

Movimentos sociais tiveram papéis ativos nos processos de democratização ocorridos a América Latina nas últimas décadas do século XX. Daquele período até os dias de hoje, muitos passaram por uma evolução amplamente registrada na literatura das ciências sociais, especialmente naquela dedicada ao estudo da sociedade civil na região.

 Um aspecto quase consensual entre os pesquisadores do setor é que a partir dos anos 1990 houve uma renovação da sociedade civil e que ela se deu de forma substitutiva – isto é, com certos tipos de atores tomando o lugar de outros. Isso teria culminado, a partir dos anos 1990, numa preponderância das organizações não governamentais (ONGs), deslocamento que ficou conhecido como “onguização” dos movimentos sociais, entre os que estudam esses fenômenos.

 Em suma, os movimentos populares, formados pelos próprios interessados nas demandas de mudança, teriam cedido espaço para organizações que também defendem mudanças, mas em nome de grupos que não são seus membros constituintes (atividade chamada de advocacy nas ciências sociais).

 Essas ações teriam acarretado uma despolitização da sociedade civil. O cientista político Adrian Gurza Lavalle, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), pesquisador do Centro de Estudos da  Metrópole (CEM), no entanto, vem conduzindo estudos que contradizem a tese da “onguização”. Um mapeamento das organizações em dois dos maiores conglomerados urbanos da América Latina, São Paulo e Cidade do México, que configuram as “ecologias organizacionais” das cidades da região, demonstrou que as ONGs conquistaram e mantiveram protagonismo, mas os movimentos sociais também estão em posição de centralidade, apesar das predições em contrário.

 “Nossas pesquisas contrariam diagnósticos céticos que mostram uma sociedade civil de organizações orientadas principalmente para a prestação de serviços e a trabalhar com assuntos públicos de modo desenraizado ou pouco voltado para a população de baixa renda”, diz Gurza Lavalle, que também é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). “Mais: elas mostram que  a sociedade civil se modernizou, se diversificou e se especializou funcionalmente, tornando as ecologias organizacionais da região mais complexas, sem que essa complexidade implique a substituição de um tipo de ator por outro.”

 Essas conclusões vêm de uma sequência de estudos comandados por ele nos últimos anos. Os mais recentes foram desenvolvidos em coautoria com Natália Bueno no CEM, um dos 17 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. O trabalho tem como pesquisadores convidados Ernesto Isunza Vera (Centro de Estudios Superiores en Antropología Social, de Xalapa, México) e Elisa Reis (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Concentra-se no papel das organizações civis e na composição das ecologias organizacionais nas sociedades civis de diversas cidades no México e no Brasil.

 O que o cientista político apresenta nos seus estudos de rede pode ser uma contribuição para que os tomadores de decisão conheçam melhor a heterogeneidade das organizações civis. “Há implicações claras para a regulação sobre o terceiro setor, no sentido de que ela se torne menos uma camisa de força e mais um marco que ofereça segurança jurídica aos diferentes tipos de organizações da sociedade civil que recebem recursos públicos ou exercem funções públicas”, diz o pesquisador.

 “O trabalho que vem sendo realizado por Gurza Lavalle, seus alunos e colaboradores é  especialmente valioso porque, por meio da análise de redes, permite mapear com mais rigor e de maneira mais fina as relações entre os movimentos sociais”, diz Marisa von Bülow, professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), especializada no estudo das sociedades civis latino-americanas. “A análise de redes não é necessariamente o melhor método, mas complementa muito bem métodos como as pesquisas qualitativas e de campo, as entrevistas etc. Permite que se vejam coisas que não poderiam ser lidas com tanta clareza pelas vias tradicionais. No caso das pesquisas de Gurza Lavalle, acabaram mostrando que as sociedades civis da região são mais diversas e plurais do que se pensava.”

 “As análises que tínhamos eram geralmente leituras impressionistas ou dados sem capacidade de produzir inferências”, diz Gurza Lavalle. Ele tirou da literatura local a evolução dos atores sociais na região, que identifica duas ondas distintas de inovação na mobilização social: tomando como plano de comparação as organizações tradicionais como as entidades assistenciais ou as associações de bairro, a nova onda de atores surgida nos anos 1960, 1970 e metade dos 1980, e a novíssima onda de atores que ganhou força nos anos 1990.

 A primeira se caracterizou pelas organizações criadas em razão de demandas sociais de segmentos amplos da população durante a vigência do regime militar. É o caso das pastorais incentivadas pela Igreja Católica e os movimentos por moradia, pela saúde e contra a carestia. As organizações da segunda onda costumam ser agrupadas na denominação de ONGs, que por sua vez deram origem às entidades articuladoras, aquelas que trabalham para outras organizações, e não para indivíduos, segmentos da população ou movimentos localizados – por exemplo, a Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) ou a Rede Brasileira Agroflorestal (Rebraf).

 A análise de redes, segundo Gurza Lavalle, permitiu avaliar a influência das associações, “tanto no seio da sociedade civil quanto em relação a outros atores sociais e políticos”. Esse resultado foi obtido por um conjunto de medidas de centralidade que computam os vínculos no interior da rede, não só aqueles diretos ou de vizinhança, mas, sobretudo, aqueles indiretos ou entre uma organização e os vínculos de outra organização com a qual a primeira interage e aos quais não tem acesso direto. “Quando nos relacionamos, estamos vinculados de forma indireta aos vínculos dos outros”, diz o pesquisador.

 A análise de redes, de acordo com o cientista político, registrou desenvolvimento  acelerado nas últimas duas décadas e é aplicável a diversas áreas do conhecimento. “Graças aos avanços da análise de redes é possível, por exemplo, detectar padrões de difusão de doenças, pois permite identificar estruturas indiretas que não estão à disposição dos indivíduos, mas atuam num quadro maior. É um caminho para superar as caracterizações extremamente abstratas e estilizadas dos atores comuns nas ciências sociais, mas sem abrir mão da generalização de resultados.” Segundo Gurza Lavalle, uma das principais vantagens desse método é complementar e ir além dos estudos de caso e controlar as declarações das próprias organizações estudadas (autodescrição) e investigar as posições objetivas dos atores dentro das redes, bem como as estruturas de vínculos que condensam e condicionam as lógicas de sua atuação.

 O método de amostragem adotado para apurar a estrutura de vínculos entre as organizações é conhecido como bola de neve. Cada entidade foi chamada a citar cinco outras organizações importantes no andamento do trabalho da entidade entrevistada. Na cidade de São Paulo foram ouvidos representantes de 202 associações civis, que geraram um total de 827 atores diferentes, 1.368 vínculos e 549.081 relações potenciais.

 Essa rede permitiu identificar claramente a vitalidade dos movimentos sociais, semelhante à das ONGs. Além disso, o estudo detectou quatro tendências da ecologia organizacional da sociedade civil em São Paulo e, em menor grau, na Cidade do México: ampliação, modernização, diversificação e, em alguns casos, especialização funcional (capacidade de desenvolver funções complementares com outras organizações). O que o pesquisador utiliza como aproximação aos “movimentos sociais” são organizações populares, “entidades cuja estratégia de atuação distintiva é a mobilização popular”, como o Movimento de Moradia do Centro, a Unificação de Lutas de Cortiços e, numa escala bem maior, o Movimento dos Sem-Terra. Estas, na rede, estão em pé de igualdade com as ONGs e as articuladoras.

 Numa posição de “centralidade intermediária” estão as pastorais, os fóruns e as associações assistenciais. Finalmente, em condição periférica, estão organizações de corte tradicional, como as  associações de bairro e comunitárias. “As organizações civis passaram a desempenhar novas funções de intermediação, ora em instituições participativas como representantes de determinados grupos, ora gerindo uma parte da política, ora como receptoras de recursos públicos para a execução de projetos”, diz Gurza Lavalle.

 “As redes de organizações civis examinadas são produto de bolas de neve iniciadas em áreas populares da cidade e por isso nos informam a respeito da capacidade de intermediação das organizações civis em relação a esses grupos sociais.”

 Outros estudos confirmam as conclusões do trabalho conduzido por Gurza Lavalle, como os de Lígia Lüchmann, professora do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina, que vem estudando as organizações civis de Florianópolis. “Eu confirmaria a ideia de que a sociedade civil é hoje funcionalmente mais diversificada do que costumava ser, com atores tradicionais coexistindo com os novos”, diz. Ela cita, na capital catarinense, a atuação de articuladoras como a União Florianopolitana de Entidades Comunitárias e o Fórum de Políticas Públicas.

 No cenário latino-americano, Gurza Lavalle e Marisa von Büllow veem o Brasil como um caso excepcional de articulação das organizações sociais ao conseguir acesso ao poder público, o que não ocorre no México. Gurza Lavalle cita como exemplos os casos do Estatuto da Cidade, que teve origem no Fórum Nacional da Reforma Urbana, e do ativismo feminista no interior do Movimento Negro, cuja história é um componente imprescindível da configuração do campo da saúde para a população negra dentro da política nacional de saúde, embora sejam mais conhecidos os casos do movimento pela reforma da saúde ou do ativismo de organizações civis na definição das diretrizes das políticas para HIV/Aids.

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