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Observatório da Gestão Pública: Inversões da Ordem Cronológica de Pagamentos

15 de agosto de 2011 - 11:27

A Administração Pública realiza seus contratos por meio de licitação, que é um procedimento, visando à escolha da melhor oferta feita por entes privados habilitados. O vencedor desse procedimento ganha o direito exclusivo de ser o único a ser contratado por aquela licitação. Sendo um contrato oneroso, ou seja, em que existem obrigações recíprocas entre os contratantes, o ente privado ganhador fornece o bem e o serviço necessário para as atividades da Administração Pública e, em troca, recebe o devido pagamento, já previsto no edital. Obviamente, a Administração não contrata com apenas um ente privado, muito menos faz apenas uma licitação por mês, hipoteticamente. Como são várias licitações, vários contratos, e várias datas de pagamento, a Administração deve observar uma ordem cronológica, uma ordem temporal de pagamentos, devendo ser saldados primeiros dos mais antigos para os mais recentes. Esse ponto está expresso na Lei de Licitações e Contratos Administrativos (LCCA), Lei nº 8.666/93, no art. 5º, como transcrito:

Art. 5º Todos os valores, preços e custos utilizados nas licitações terão como expressão monetária a moeda corrente nacional, ressalvado o disposto no art. 42 da Lei nº 8.666/93, devendo cada unidade da Administração, no pagamento das obrigações relativas ao fornecimento de bens, locações, realização de obras e prestação de serviços, obedecer, para cada fonte diferenciada de recursos, a estrita ordem cronológica das datas de suas exigibilidades, salvo quando presentes relevantes razões de interesse público e mediante prévia justificativa da autoridade competente, devidamente publicada. (grifos nossos)

A Administração deve “obedecer (…) a estrita ordem cronológicas das datas de sua exigibilidade”. Assim que se realiza a obrigação, a Administração deve saldar as obrigações, respeitando as datas de exigibilidade. A essa regra existe uma exceção: “salvo quando presentes relevantes razões de interesse público e mediante prévia justificativa da autoridade competente, devidamente publicada”. Dessa exceção têm-se três quesitos: 1) interesse público; 2) prévia justificativa da autoridade competente; 3) publicidade. Interesse público é o bem-estar coletivo, devendo ser a finalidade do trabalho da Administração e um dos princípios norteadores de suas ações, estando acima do interesse privado. A prévia justificativa da autoridade competente é condição para a exceção da regra da LLCA, na medida em que antes da inversão, a autoridade deve ter uma justificativa, um motivo para tomar uma determinada ação. Finalmente, publicidade está prevista no art. 37 caput da Constituição Federal, devendo a Administração obedecer a esse Princípio Constitucional, tornando os atos administrativos mais transparentes.

Em Marília, no primeiro semestre de 2010, a Prefeitura Municipal de Marília realizou um total de 251 inversões de pagamentos, conforme o gráfico a seguir:


Como a Administração é legalmente obrigada a fornecer uma justificativa, todas as inversões tiveram o mesmo motivo: “manutenção de serviços essenciais”. Será que 251 inversões realmente se justificam por se tratar de serviços essenciais? Para a alegria de uns e tristeza de outros, a Lei nº 7.783, de 28 de Junho de 1989, esclarece o que se tratam os tais “serviços essenciais”:

Art. 10 São considerados serviços ou atividades essenciais:
I – tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis;
II – assistência médica e hospitalar;
III – distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos;
IV – funerários;
V – transporte coletivo;
VI – captação e tratamento de esgoto e lixo;
VII – telecomunicações;
VIII – guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares;
IX – processamento de dados ligados a serviços essenciais;
X – controle de tráfego aéreo;
XI compensação bancária.

Graças ao Princípio da Publicidade já mencionado anteriormente, o OGP pode averiguar os objetos dos contratos das empresas que receberam seus pagamentos fora da ordem cronológica. O resultado pode ser apresentado da seguinte forma:

 

As inversões previstas no art. 10 da Lei nº 7.783/89 foram rotuladas como regulares ou legais (em verde), pois estão dentro da Lei. Da mesma forma, as inversões cujos objetos do contrato não estão previstos no art. 10 da referida Lei foram rotuladas como irregulares (em vermelho). E por se tratar de um trabalho em andamento, houve algumas inversões que não puderam ser identificados os objetos dos contratos e foram rotuladas como “não auferidas” (em amarelo). O gráfico compara o número total de inversões (em azul), as inversões regulares, as inversões irregulares e as inversões não auferidas, entre os meses do primeiro semestre e apresenta dados mais detalhados das 251 inversões de pagamentos.

Vamos agora aos valores. Os valores totais do primeiro semestre resultam em um montante de R$ 16.317.991,90 (dezesseis milhões e trezentos e dezessete mil e novecentos e noventa e um reais e noventa centavos), divididos da seguinte forma:


Esses R$ 16.317.991,90 (dezesseis milhões e trezentos e dezessete mil e novecentos e noventa e um reais e noventa centavos) poderiam ser utilizados para suprir os cortes no orçamento mostrados no artigo “Passando a Tesoura”, podendo aumentar o gasto com saúde em R$ 10 milhões de reais com certa “folga”.

O gráfico abaixo compara os valores das inversões regulares com irregulares:


A linha verde representa as inversões feitas regularmente, enquanto a linha vermelha representa o oposto, as inversões irregulares. Percebe-se logo que existe um padrão entre as linhas entre janeiro e abril, rompido somente em maio. É nesse ponto que as inversões causam o prejuízo de R$ 1.812.517,55 (um milhão e oitocentos e doze mil e quinhentos e dezessete reais e cinqüenta e cinco centavos) ao patrimônio público, um aumento de 561,17% (!) se comparado aos outros meses. Sendo que esse dinheiro foi utilizado de maneira irregular, não prevista no art. 10 da Lei supracitada. Esse dinheiro poderia ser utilizado na realização das atividades sugeridas no artigo “Caixa Cheio”.

Ressaltamos o seguinte: inverter a ordem cronológica de pagamentos é possível e legal de acordo com a Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Entretanto, fazer uso abusivo das permissões previstas é agir de má-fé, atentando contra Princípios Constitucionais como Impessoalidade, Moralidade e Probidade.

A Administração tem o dever de agir com eficiência e moralidade. A cada quatro anos são eleitos representantes do povo para os Poderes Legislativo e Executivo, os quais devem zelar pelo erário, pelo patrimônio da coletividade. Ao burlar uma regra prevista em Lei, esses representantes estariam quebrando a confiança depositada neles, causando dano à coletividade. Conforme Ronny Lopes de Torres (2009, p.37):

“Tais atitudes são comuns em governos de mentalidade pequena e provinciana, os quais tratam o erário como coisa própria, arvorando-se na condição de autoridade e nas prerrogativas que a fazenda tem, enquanto devedora, como a possibilidade de pagar as obrigações reconhecidas pela Justiça através dos intermináveis precatórios”.

Frustrar a ordem de pagamentos de maneira arbitrária, sem a devida justificativa, ou justificando de forma fraudulenta, com intuito de beneficiar uns em prejuízo de outros, constitui crime previsto no art. 92 da Lei de licitações:

“Art. 92. Admitir, possibilitar ou dar causa a qualquer modificação ou vantagem, inclusive prorrogação contratual, em favor do adjudicatário, durante a execução dos contratos celebrados com o Poder Público, sem autorização em Lei, no ato convocatório da licitação ou nos respectivos instrumentos contratuais, ou, ainda, pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade, observado o disposto no art. 121 desta Lei:

Pena – detenção, de dois a quatro anos, e multa.

Parágrafo único. Incide na mesma pena o contratado que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, obtém vantagem indevida ou se beneficia, injustamente, das modificações ou prorrogações contratuais.”

De acordo com o Marçal Justen Filho, “O crime configura-se pela ação ou omissão que produzam vantagem indevida para o contratado. Admitir significa aceitar, de modo expresso ou implícito. Possibilitar indica permitir ou dar oportunidade. Dar causa abrange qualquer ação ou omissão que acarrete o resultado danoso”.

O que se pretende proteger com essa norma penal, primeiramente, é o Estado e, secundariamente, o particular que teve seu pagamento preterido. No caso, pune-se o funcionário público que atente contra a moralidade da Administração Pública. É necessário, para esse crime, que exista vontade por parte do agente público de intencionalmente atribuir vantagem indevida. O contratante que recebe a vantagem indevida também responde nos mesmos moldes do funcionário público e também é necessária a vontade de causar dano ao erário. (PEREIRA JÚNIOR, 2007, p. 910 e ss.).

A Lei protege o Estado e o particular que teve seu pagamento atrasado por causa de artimanhas políticas de pessoas que não medem conseqüências para alcançar seus objetivos privados. E é isso que vem ocorrendo na Prefeitura de Marília.

O OGP continuará seu trabalho de controle social, visando transparência e ética na gerência do patrimônio público. Seria adequado que o Ministério Público instaurasse uma investigação para apurar as contas públicas na questão da inversão da ordem cronológica de pagamentos. A parte do Observatório foi feita, averiguando, denunciando, controlando as contas públicas. Agora a “bola” está com as autoridades competentes para analisar o caso.

Aubrey Leonelli

 

*Ressaltamos que este é um trabalho em progresso, no qual foi averiguado as inversões de pagamentos do primeiro semestre de 2010, correspondente a Janeiro a Junho. Pretende-se depois averiguar o restante de 2010.

Fonte: Observatório da Gestão Pública – 15/08/2011

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