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Parada no tempo

22 de abril de 2013 - 11:29

Município de 27.000 habitantes situado a 50 quilômetros de Maceió, Murici frequenta com cena assiduidade o noticiário nacional por três motivos — todos lamentáveis: inundações devastadoras, escândalos de desvio de dinheiro público e o fato de sempre ter na prefeitura, em esquema de revezamento, políticos de sobrenome Calheiros. A família domina há mais de trinta anos (21 deles ininterruptos) a administração municipal, muito embora seu filho mais famoso. o presidente do Senado, Renan Calheiros, 57 anos, só apareça por lá em campanha ou em dia de inauguração. Chafurdado em alguns dos piores indicadores socioeconômicos do Brasil — até mesmo para os padrões alagoanos —, Murici é o resultado da velha política assistencialista, cujas raízes remontam ao coronelismo. Um terço dos moradores não sabe ler nem escrever, 65% dependem do Bolsa Família para sobreviver e o índice de Desenvolvimento Humano rasteja em 0,58 (numa escala que vai de 0 a 1). Uma das maiores escolas públicas muricienses, com 560 alunos, funciona em salas de chão de terra separadas por tapumes. As crianças saem uma hora mais cedo porque a escola não oferece merenda. O problema não parece ser, nesse caso, de miséria. Um processo que aponta irregularidades nas verbas de merenda na cidade já chegou ao Supremo Tribunal Federal.

O assunto que alvoroça os moradores é o destino de mais de 2000 casas construídas com verba federal de 95 milhões de reais. Na teoria, seriam destinadas às famílias desalojadas na enchente de 2010, que deixou quase 10000 desabrigados e nove mortos. Na prática, não tem sido assim. As casas estão prontas: são dois conjuntos habitacionais novinhos, o Olavo Calheiros — patriarca do clã e primeiro a fincar pé no poder, ao assumir a prefeitura, em 1980 — e o Pedro Raposo Tenório, de família aliada política dos Calheiros. A maioria desses imóveis foi distribuída segundo critérios duvidosos, que quase sempre privilegiam os mais próximos do poder. O Ministério Público Federal determinou à prefeitura que refaça a lista de cadastrados levando em conta critérios menos clientelistas.

A desabrigada Maria Benedita Francisca da Silva, 69 anos, perdeu tudo na enchente e continua sem teto. "Passei um ano e meio morando numa barraca de lona da prefeitura. Até hoje não recebi a casa que me prometeram", diz ela, hoje vivendo com onze familiares em um puxadinho erguido no quintal da casa da filha. Claudivan Maurício de Souza, o Lobinho — integrante do rol dos que fazem parte do séquito oficial —, não tem motivo de queixa. Funcionário da prefeitura e notório adulador do prefeito Remi Calheiros, irmão de Renan, Lobinho já mora no conjunto Olavo Calheiros. A escritura está em nome de sua mulher, Poliana da Silva Torres, que ainda era solteira e morava em Minas Gerais quando o Rio Mundaú transbordou e inundou Murici. Interpelada pela reportagem de VEJA na porta da casa nova, Poliana ligou para Lobinho: "O que eu digo se perguntarem se a sua casa foi mesmo atingida pela enchente?". A orientação dele foi responder que sim, foi. Mais tarde, ouvido por VEJA, o funcionário relativizaria o estrago: "Não perdi quase nada", admitiu. No local em que morava, a água chegou no máximo "aos pés da cama e ao fundo de um armário velho". Por que então entrou na lista de beneficiados? "Bom, entrou água, né?"

Com seus 1.200 funcionários, a prefeitura é o maior cabide de empregos de Murici. Quem não trabalha lá ou no pequeno comércio local depende do poder público — ou seja, da boa vontade dos Calheiros — para pôr comida na mesa. Moradora da favela Portelinha, Veroneide da Silva, 25 anos, vive com os três filhos em um dos barracos que a prefeitura fornece. O piso é de terra e o banheiro é o mesmo rio onde ela e outras 400 famílias lavam roupa e recolhem água para cozinhar. "Não acredito mais que possa melhorar de vida", resigna-se Veroneide. Em seu quarto mandato, o prefeito Remi argumenta que "Murici é uma cidade com muitos problemas, mas temos resolvido muitos também". Sobre irregularidades na entrega das casas pós-enchente, rebate em tom indignado: "Você está me contando uma novidade. Não coloquei um só nome na lista".

A pouca disposição do prefeito para discutir sua administração contrasta com a paixão pelo Murici Futebol Clube, presenteado pela Câmara Municipal com uma mesada de 40000 reais (repasses que Remi jura nunca terem chegado ao seu time do coração, quinto colocado no último campeonato alagoano). Renan e seu irmão deputado, Olavo, têm negócios e fazendas na região. A pujança financeira e política da família é herança do patriarca, major Olavo (a patente é simbólica), comerciante de cavalos que levava vida humilde até encontrar o caminho da prefeitura e, a partir dele, a trilha para o poder e a riqueza. Curiosamente, o major foi eleito em nome da renovação, como o homem do povo que derrotou a oligarquia dominante — para em seguida criar seu próprio clã e tudo voltar ao que era antes.

Remi tem o sobrinho Olavo Neto como seu vice. A imprescindível Secretaria de Assistência Social, que detém o cadastro do Bolsa Família, está sob o comando de Soraya, a primeira-dama. As portas do casarão que Remi herdou do pai ficam sempre abertas (só os quartos são trancados), e pessoas humildes circulam por lá pedindo todo tipo de favor. Acostumada ao domínio da família, acomodada aos seus métodos, temerosa de perder benefícios, a população faz o que se espera dela: vota nos Calheiros. Até porque, em época de eleição, ganhar uma nota de 50 reais ou uma cesta básica faz parte da rotina. O clã não arreda pé de Murici nem quando a lei não deixa Remi se reeleger: nessas ocasiões, o sobrinho Renan Filho, 33 anos, toma seu lugar. "Quando uma família comanda a cidade, é muito comum que a máquina pública passe a ser usada para atender a interesses particulares", diz o cientista político Ranulfo Paranhos. Sobrecarregada de índices negativos, numa coisa Murici faz bonito: na obtenção de verbas federais. Desde 1996, mais de 39 milhões de reais foram aprovados por diversos ministérios para a cidade, em 114 convênios — para efeito de comparação, a vizinha União dos Palmares, que tem o dobro de habitantes, firmou 77. Pena que, na hora de repassar recursos, o saneamento básico seja invariavelmente goleado pelo Murici Futebol Clube.

Fonte: Revista Veja

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