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Por onde entra a corrupção

22 de novembro de 2010 - 00:00

Na última década, licitações frequentaram como nunca o repertório nacional de escândalos de corrupção.

Diante de um momento que promete uma lufada inédita de investimento público, soprada pelos PAC 1 e 2, obras da Copa de 2014 e da Olimpíada de 2016, não há contribuinte imune a calafrios frente ao risco de que pela porta aberta para grandes projetos se infiltrem novos desvios.

– Existe uma indústria ilícita de licitações, formada por agentes privados e pessoas infiltradas na administração pública – diagnostica o promotor de Justiça, Affonso Ghizzo Neto, de Santa Catarina.

Especialistas expõem as causas dessa cena constrangedora com quadros que vão da formação histórico-cultural do país até a inadequada formação dos servidores responsáveis pelo controle de compras e obras no poder público. Apontam ainda brechas na lei, má aplicação das regras e deficiências nos projetos. Antônio Carlos Cintra do Amaral, especialista em Direito Administrativo e Econômico, participou da elaboração das primeiras regras para estatais, nos anos 70. Do alto de sua experiência, recomenda modernização:

– É necessária uma revisão da Lei das Licitações. A realidade muda e a lei está ficando velha. Mas de nada adianta alterar as regras sem aperfeiçoar a elaboração de projetos de engenharia, os termos de referência de serviços e de especificações do material ou equipamento a adquirir.

É o que se tenta fazer no Congresso nos últimos quatro anos. Uma proposta do Executivo deu origem ao projeto de lei 32/2006. Foi aprovado na Câmara e na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, mas ainda precisa passar pelo plenário. Retomar a tramitação é tarefa “prioritária”, conforme a secretária de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento, Glória Guimarães:

– A lei precisa ser aprimorada para atender às demandas dos novos tempos e acompanhar os processos tecnológicos.

No limiar de uma nova administração, por mais continuidade que represente, as mudanças que preveem a extensão da modalidade de pregão para licitar obras – não apenas compras de produtos e serviços básicos – acendem uma polêmica difícil de administrar.

Critério do preço é questionado

Autor do livro Questões Relevantes nas Licitações Públicas, o advogado Airton Rocha Nóbrega considera o problema ainda mais relevante no Brasil devido à estrutura dos gastos públicos:

– Quase todo o orçamento que não é usado com pessoal é gasto com licitações. É uma grande quantidade de recursos para entregar a servidores que, apesar de esforçados, não têm acesso à ferramenta necessária, o conhecimento.

Dentre as regras da Lei das Licitações, a que mais incendeia a discussão é a que prevê o critério de menor preço para definição do vencedor. Eduardo Lafraia, ex-presidente do Instituto de Engenharia de São Paulo, é um combativo adversário:

– O que deveria interessar é o menor preço no fim da obra, não na licitação. Não adianta oferecer um preço teoricamente baixo e depois acrescentar o custo da obra parada, o custo financeiro do prazo que em vez de ser 12 meses vira 36 meses. É um sistema usado pelas empresas piores. Comem o filé mignon e deixam o osso para o governo resolver.

Pactos para evitar ofertas de suborno

Lançado no início deste ano, o Movimento Anticorrupção já reúne 39 entidades de profissionais e empresas envolvidas em obras públicas. Coordenador da iniciativa, Marcos Túlio de Melo, presidente do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (Confea), afirma que o objetivo é firmar pactos de integridade, em que os envolvidos se comprometem a não oferecer nem aceitar suborno:

– Vamos partir de um acordo setorial com o governo que resgate a cultura técnica, de que a licitação só pode ser feita a partir do projeto executivo completo e evoluir para que a articulação dê efetividade e seja percebida pela sociedade.

Inspirado em movimentos internacionais, o dirigente aponta experiências como a da Colômbia, pioneira na adoção de pactos de integridade na América Latina, como exemplo a ser seguido.

– Estamos passando por um processo que pode ser lento, doloroso, mas a aprovação da Lei da Ficha Limpa, mesmo com seus limites, mostra que sociedade brasileira está mais exigente – diz Melo.

Observatórios do destino de recursos públicos, como a ONG contas abertas, também dirigem o radar para a movimentação de recursos nos contratos bilionários da retomada de portentosas obras públicas, grandes eventos esportivos e até a exploração do pré-sal.

– É bom lembrar que as obras dos Jogos Panamericanos eram estimadas em R$ 300 milhões, e acabaram custando quase 10 vezes mais – avalia Gil Castello Branco, economista da ONG contas abertas.

O difícil esforço de punir

Alan de Oliveira Lopes é engenheiro civil de formação e trabalha na Polícia Federal fazendo uma espécie de autópsia da corrupção. Quando o crime já foi cometido, ele é um dos especialistas chamados a fazer o laudo para encaminhar aos delegados da PF, que vão enquadrar os envolvidos.

Lopes se deu conta de que, no Brasil, não há uma legislação específica para definir crimes relacionados ao desvio de dinheiro público. Nas outras delegacias especializadas da PF – entorpecentes, crimes ambientais e financeiros –, havia legislação específica para cada tipo de delito. Além disso, o servidor constatou que as penas previstas para os ilícitos em obras públicas são pequenas e, além disso, o prazo para assegurar punição é curto.

– A polícia tem um gasto enorme e, quando chega ao fim, o crime prescreve.

Lopes resolveu propor um anteprojeto de lei. Depois de muita mobilização, conseguiu com que o deputado Carlos Mota (PSB-MG) apresentasse a proposta, que virou o projeto de lei 6.732/2006.

– Foram feitos dois substitutivos, porque o texto não agradava a todo mundo. Isso foi abrandando um pouco o texto. Mas aí veio a tragédia. Nem o deputado que havia apresentado o projeto nem o relator conseguiram se reeleger – relata Lopes.

O que consola Lopes é que o projeto não morreu, ainda está lá, só esperando um empurrão:

– Eu queria que fosse um projeto puro, mas é melhor ter uma lei mais ou menos boa do que nenhuma.

Os ganhos que vêm do pregão

Foi pelas mãos de Rubens Portugal Bacellar, paranaense de Curitiba radicado em Brasília há mais de duas décadas, que estreou o sistema de pregão no Brasil. Hoje, ele preside a Ordem dos Pregoeiros do Brasil e calcula que as disputas presenciais ou eletrônicas permitiram economia de bilhões de reais.

– No primeiro pregão presencial que fizemos, de serviços de vigilância na Anatel, já pagamos 20% menos. Depois, no Ministério do Planejamento, para serviços de limpeza, economizamos R$ 1 milhão no primeiro contrato – relata.

Uma das primeiras iniciativas no pregão presencial, lembra Bacellar, foi o que se chama de inversão das fases do processo. Nas concorrências, o habitual é apresentar primeiro a habilitação, depois seguir para a disputa de preço. Além disso, na ordem original não há possibilidade de negociação com o vencedor para reduzir o preço.

– Com a inversão, a gente faz como a pessoa que pesquisa compras para sua casa. Vai às lojas, compara preços, depois volta na que gostou mais e diz ‘na loja tal, me ofereceram mais barato’. O ideal é comprar pelo melhor preço, não pelo menor. Pagar menos, dependendo da qualidade, não quer dizer que comprou bem – pondera.

Depois da experiência com os pregões presenciais – em que os concorrentes são reunidos no local –, Bacellar evoluiu para o eletrônico, o que permitiu abrir a disputa para todo o país. Os participantes acessam uma rede fechada, sem saber quem mais participa.

– É um sistema que dificulta muito os cartéis – afirma Bacellar.

Ele reconhece que a modalidade não é imune a fraudes. Os pregoeiros estão às voltas com programas-robôs criados para dar lances.

– É um privilégio iniciar algo que dá certo no Brasil. Por mais que ainda tenhamos problemas, nesses quase 12 anos já rendeu bilhões em economia.

MARTA SFREDO

 
21/11/2010

Fonte: Zero Hora

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