Há algo paradoxal em viver na era mais vigiada da história — satélites, câmeras, big data — e, ainda assim, ter de lutar para descobrir quanto custa a coleta de lixo da própria rua, por exemplo. O paradoxo, porém, começa a ruir quando o cidadão comum resolve substituir a indignação passiva pela curiosidade de um programador amador. Basta um exemplo para ilustrar o ponto: a API do Painel Nacional de Contratações Públicas (PNCP), um canal digital onde o governo brasileiro despeja, diariamente, detalhes de cada licitação realizada de Oiapoque ao Chuí.
API é sigla para Application Programming Interface. Pense nela como um caixa eletrônico de dados públicos. Digita‑se a senha, uma requisição simples, e, em segundos, escorrem na tela nomes de fornecedores, valores empenhados, prazos contratuais. Para quem vive dizendo que “o governo esconde tudo”, a primeira incursão por esse caixa eletrônico costuma trazer surpresa e, diga-se, um certo prazer clandestino: lá estão, em texto puro, contratos milionários e demais informações sobre o cotidiano da Administração.
Tudo isso ajuda a dissipar dois mitos correntes. O primeiro: de que a transparência governamental é inútil porque “ninguém lê planilha”. O segundo: de que só analistas de dados podem extrair sentido de um JSON — o formato, também espantosamente simples, em que a API devolve a informação. JSON é texto com chaves, vírgulas e dois pontos; importado para uma planilha, vira coluna “Fornecedor”, coluna “Valor”.
Os defensores do status quo costumam reagir em duas frentes. Na primeira, alegam que dados abertos sem contexto confundem o leigo. É verdade: confusão existe, sobretudo quando cifras de dez casas decimais desfilam sem legenda. Mas a confusão não é argumento para reter informação; é convite para didática. Nada impede que prefeituras publiquem FAQs, glossários ou mesmo vídeos explicativos junto aos conjuntos de dados. A segunda linha de defesa recorre ao velho “isso não é papel do cidadão”, como se a fiscalização popular fosse sinônimo de ingovernabilidade. Ora, o artigo 74, § 2.º da Constituição brasileira não poderia ser mais claro: qualquer pessoa tem legitimidade para questionar os gastos públicos. Quando o Estado facilita o acesso, não abdica da governabilidade, apenas a compartilha.
O dilema atual, portanto, não é falta de dados, mas de mediação. Por que escolas de ensino médio ou universidades não introduzem no currículo noções básicas de leitura de orçamento, tal qual se ensina regra de três? Os arquivos já estão aí; falta convertê‑los em linguagem cidadã.
Alguém perguntará, com razão, sobre a assimetria tecnológica. Nem todo brasileiro conta com computador, internet rápida ou tempo livre para vasculhar contratos. Reconheça-se o abismo. Mas abismos se reduzem convertendo‑se conhecimento em serviço público: tutoriais curtos, mutirões de dados. Uma sociedade que naturalizou oficinas de imposto de renda pode muito bem naturalizar oficinas de transparência.
Os resultados, ainda que graduais, contaminam positivamente o ecossistema político. Legisladores ficam menos confortáveis em aprovar em “regime de urgência” créditos adicionais mal explicados. Secretários aprendem que aditivos sucessivos deixarão trilhas digitais indeléveis. E o eleitor ganha critério, algo mais forte do que indignação difusa, para decidir se reelegerá um prefeito que sistematicamente fraciona compras para fugir de licitação.
Em 1914, o Justice Louis Brandeis, da Suprema Corte dos EUA, cunhou a metáfora de que a luz do sol é o melhor desinfetante. Se vivesse hoje, talvez preferisse um termo menos bucólico: payload — o pacote de dados que trafega pela API e chega, inalterado, ao seu computador. É luz concentrada em bytes. Ao adotá‑la, devolvemos ao controle social sua função original: não a de caça às bruxas, mas a de higiene periódica da vida pública.
Quem diria que a grande utopia cívica do século XXI caberia na aba de um navegador? E que bastaria apertar Enter para lembrar a qualquer governante que, antes de pertencer a uma planilha, o dinheiro é — e sempre será — nosso. Porque Marília tem dono, cidadão: VOCÊ!