Há momentos em que o STFmais parece uma casa de horrores. Como se não bastasse ter se notabilizado nosúltimos anos por tirar da cadeia banqueiros corruptores e proteger torturadoresda ditadura militar, ele agora conseguiu colocar em xeque a aplicação de umalei que visava impedir políticos em julgamento de se apresentar em eleições.
Se levarmos em conta as argumentações de certos juízes do STF, nem sequer aaplicação da lei a partir de 2012 está realmente garantida.
Alguns defensores da decisão afirmaram que a lei quebrava o conceito deinocência presumida. No entanto, ela era principalmente um dispositivo desegurança social contra políticos que já haviam sido condenados em algumainstância, isso ao criar uma suspensão da possibilidade de concorrer a novaseleições enquanto durar o processo.
Não se trata de julgamento consumado, mas parte de um procedimento dejulgamento em curso. Pessoas já julgadas em primeira instância devem se afastar decargos públicos até ficar claro que não representam risco ao funcionamento doprocesso político.
Não se pode dizer que a lei quebre a vontade popular. Aquele que recorresistematicamente à compra de votos, ao abuso do poder econômico, ao monopóliode mídias locais, produz distorções profundas no processo eleitoral.
Eles calam as vozes dissonantes, aproveitam-se de situações de vulnerabilidade,como a miséria e a necessidade de amparo social, criando relações forçadas dedependência. Por isso, tais distorções impedem que a vontade popular seexpresse.
Da mesma forma, dizer que a mera leitura do artigo 16 da Constituição Federalresolvia a questão é, no mínimo, considerar a quase metade do STF, que votou afavor da aplicação da Lei Ficha Limpa para a eleição de 2010, como inapta.
Pode-se sempre argumentar que o espírito da lei visava impedir mudançascasuístas de regras no meio do processo eleitoral, isso a fim de privilegiarpartidos ou grupos. A Lei da Ficha Limpa estava longe de ser algo dessanatureza.
Por fim, é aterrador ouvir juízes afirmarem que a opinião pública não deve serlevada em conta ao se interpretar a lei. Isso revela o caráter monárquico doJudiciário.
Trata-se de um poder sem participação popular em nenhuma de suas instâncias. NoBrasil, nem sequer promotores públicos são eleitos.
Amparados num positivismo jurídico equivocado, eles se esquecem de se perguntarsobre qual vontade popular está por trás da letra da lei.
O que não é estranho para alguém que nunca precisará prestar contas ao povo (comoé o caso do Executivo e do Legislativo). Por isso, as discussões sobre reformasdo Judiciário deveriam partir da necessidade de sanar o deficit democráticodesse poder.
Autor: Vladimir Safatle
Publicado no jornal Folha De São Paulo -29/03/11