Defendia Hannah Arendt a necessidade vital da afirmação do espaço político nas sociedades modernas, sociedades em que a condição humana revelou-se mais individual e econômica do que política e coletiva. Para ela o mundo só pode ser compreendido como aquele no qual “pertencemos enquanto somos no plural”. Seguindo seus passos é possível entender os limites da modernidade que apenas avançou para uma democracia representativa e não até uma democracia participativa. De todo modo, é inegável a importância das democracias atuais e a correspondente atuação dos nossos representantes para a preservação da organização política e contra a ameaça do totalitarismo, tão rechaçado na obra arendtiana.
Ninguém questiona o valor dos parlamentos na construção permanente das democracias, bem como parece incontestável a necessidade de certas garantias para o livre exercício da atuação parlamentar. Estas garantias, hoje chamadas, genericamente, de imunidades parlamentares, foram gestadas, com os contornos atuais, no processo revolucionário francês, de onde se difundiram, ao longo dos anos, por toda a Europa. Embora mantidas, na atualidade, por países de forte tradição democrática, seu delineamento é exclusivamente restrito aos limites da atuação de senadores e deputados e, portanto, bem diferenciado daquele havido na Constituição brasileira e nas respectivas interpretações aqui produzidas.
Com um Judiciário independente, sem qualquer subordinação ao Executivo, consoante se afigura no tradicional sistema de separação de poderes, perde sentido o apego as imunidades conforme geradas na França revolucionária por receio dos juízes vinculados ao príncipe. Só para exemplificar, na França dos nossos dias as imunidades parlamentares são restritas as opiniões ou votos emitidos pelos parlamentares, os quais, fora das sessões do parlamento, podem ser presos como qualquer cidadão. Nos Estados Unidos os congressistas respondem pelos crimes comuns perante os juízes de primeiro grau, sem nenhum tipo de privilégio.
No Brasil as imunidades vão muito além da necessária proteção aos votos e as opiniões relativas à ação parlamentar de senadores, deputados e vereadores. Elas se estendem para manifestações privadas, completamente desvinculadas da função de fiscalização da coisa pública e alcançam até as prerrogativas processuais, na verdade privilégios concedidos a senadores, deputados federais e deputados estaduais. As prerrogativas, da maneira como são correntemente compreendidas, chegam ao cúmulo de impedirem, por exemplo, a prisão de um parlamentar determinada pela Justiça por conta de um estupro, ou qualquer outro delito. As prerrogativas autorizam as Casas dos parlamentares processados a suspender, desde que decidido por maioria, a tramitação de um processo criminal por homicídio, corrupção passiva, ou qualquer outro crime comum. A prerrogativa de foro determina que deputados e senadores e até autoridades dos Poderes Executivo e Judiciário, sejam julgados por juízes diferentes daqueles que julgam o povo.
Não é sem motivos, pois, que construção da sistemática das imunidades, entre nós, levou no decorrer dos anos a uma impunidade escancarada de membros do parlamento federal e estadual, denunciada abertamente pela imprensa e por juristas mais independentes. Do modo como vêm sendo produzidas e interpretadas, constituem-se, sem quaisquer exageros, em uma licença para o crime, em uma autorização para delinqüir.
No Estado Democrático de Direito as imunidades somente podem vingar como prerrogativa que objetiva garantir, exclusivamente, o livre exercício da função parlamentar. E mesmo diante de um sistema constitucional que precisa de modificação, só encontram significado quando o crime cometido pelo parlamentar estiver estritamente vinculado a sua atuação prevista em lei. Seria ofender, abertamente, o princípio constitucional da igualdade, reconhecido pela Constituição como Direito Fundamental, admitir a utilização dessa técnica para afiançar os crimes comuns praticado pelos parlamentares. Já é hora do Judiciário filiar-se, em suas interpretações, a essa tendência contemporânea.
* Alberto Jorge C. de Barros Lima – Juiz de Direito em Alagoas