Quando tudo é urgente: Os riscos da aceleração legislativa na Câmara de Marília
A concretização do ideal democrático transcende significativamente o exercício periódico do sufrágio. Materializa-se, sobretudo, na observância de procedimentos deliberativos que asseguram a legitimidade das decisões públicas por meio da transparência, debate qualificado e participação plural. Entretanto, no município de Marília, verifica-se um fenômeno institucional preocupante que vem se consolidando no âmbito da Câmara Municipal há bastante tempo: a utilização sistemática e indiscriminada do denominado “regime de urgência” como mecanismo de aceleração do processo legislativo.
A teoria democrática deliberativa, notadamente aquela desenvolvida por Jürgen Habermas, enfatiza que a legitimidade das normas jurídicas deriva essencialmente de um processo de discussão racional inclusivo entre os potencialmente afetados. Conforme sustenta o filósofo alemão em sua obra Facticidade e validade, o procedimento comunicativo que antecede a formação da norma é precisamente o elemento que lhe confere validade material, transcendendo a mera legalidade formal. O Parlamento, nesta concepção, constitui fórum privilegiado de debate público, onde diferentes racionalidades são confrontadas e depuradas antes de cristalizar-se em forma normativa.
O artigo 144, do Regimento Interno da Câmara Municipal de Marília, prescreve expressamente que a segunda discussão de projetos legislativos não poderá realizar-se na mesma sessão da primeira, ressalvando tal possibilidade apenas nas hipóteses em que “a matéria for considerada de extrema urgência, reconhecida pelo Plenário a requerimento de qualquer Vereador”.
Esta norma excepcional, cuja aplicação deveria restringir-se a circunstâncias extraordinárias devidamente justificadas, tem sido empregada de maneira manifestamente sistemática e ritualística. Tornou-se prática institucionalizada que, antes do início da ordem do dia em cada sessão legislativa, um membro da Mesa Diretora formule requerimento genérico de aplicação da exceção prevista no art. 144, sem qualquer fundamentação específica para cada proposição. O caráter protocolar desse procedimento evidencia a descaracterização completa do instituto da urgência, pois, como evidencia a lógica elementar, quando tudo é urgente nada é efetivamente urgente.
A consequência desta prática é a aprovação açodada de proposições legislativas potencialmente impactantes para o município, sem o devido amadurecimento reflexivo, comprometendo a dimensão deliberativa do processo e obstaculizando a efetiva participação da sociedade civil.
Jeremy Waldron, em sua obra Legislating with Integrity, elabora uma sofisticada defesa do valor intrínseco do processo legislativo adequadamente estruturado. O jusfilósofo argumenta que a produção legislativa não deve ser avaliada exclusivamente por seus resultados, mas também pela justeza de seu procedimento, especialmente em contextos sociais marcados pelo pluralismo de concepções morais. Waldron enfatiza que as normas procedimentais do processo legislativo devem ser compreendidas não apenas em sua tecnicidade formal, mas em referência aos valores profundos que lhes conferem sentido e legitimidade, como igualdade de participação, oportunidade de debate e pluralismo representativo.
Por isso, a supressão de etapas deliberativas essenciais compromete a própria integridade do sistema representativo. A prática legislativa em análise representa, em sua essência, vulneração a princípios constitucionais estruturantes do ordenamento jurídico brasileiro, notadamente a publicidade (art. 37, caput, CF), a moralidade (art. 37, caput, CF) e o pluralismo político (art. 1º, V, CF).
A aprovação concentrada de proposições legislativas em turnos sucessivos durante a mesma sessão implica significativo cerceamento do direito fundamental à informação da coletividade. Os cidadãos ficam objetivamente impossibilitados de tomar conhecimento efetivo das matérias em deliberação, resultando na inviabilização prática de qualquer modalidade de participação cívica ou controle social sobre a atividade parlamentar.
Esta situação é substancialmente agravada por outra prática institucional verificada: a publicação da pauta das sessões ordinárias ocorre apenas na quinta ou sexta-feira anterior à sessão de segunda-feira. Tal cronologia administrativa, já problemática em si mesma por conceder exíguo intervalo temporal para conhecimento e mobilização da sociedade civil, torna-se ainda mais gravosa quando combinada com a aplicação sistemática do art. 144. O resultado é a concretização de um processo legislativo virtualmente inacessível ao escrutínio público, em que matérias são conhecidas e deliberadas em definitivo antes que a coletividade possa sequer inteirar-se adequadamente de seu conteúdo. Como disse um membro da Casa de Leis recentemente, muitas vezes os vereadores são “pegos de surpresa”.
Conforme sustenta Marcelo Cattoni, autor inspirado na teoria habermasiana, o devido processo legislativo deve proteger não apenas as regras constitucionais formais expressas, mas toda a “gênese democrática” da norma, compreendendo inclusive as etapas regimentais que asseguram a dimensão dialógica e inclusiva do procedimento. Tal concepção ampliada sugere o reconhecimento de um direito fundamental difuso da coletividade de “não sofrer interferência senão mediante normas jurídicas produzidas em conformidade com o procedimento constitucionalmente determinado”, concepção que encontra ressonância em julgados do Supremo Tribunal Federal.
No plano da dinâmica interna do Poder Legislativo, as minorias parlamentares experimentam substancial restrição em suas prerrogativas constitucionais. O intervalo temporal entre as discussões configuraria espaço institucional imprescindível para a articulação de alternativas, mobilização da opinião pública ou construção de consensos progressivos mediante aprimoramento textual – elementos essenciais à materialização do pluralismo político em sua dimensão procedimental.
O fenômeno da aceleração procedimental do processo legislativo não constitui particularidade do ordenamento jurídico brasileiro. Em sistemas constitucionais de referência internacional, observa-se o desenvolvimento de sofisticados mecanismos de controle direcionados à preservação da integridade deliberativa.
No sistema constitucional espanhol, o Tribunal Constitucional estabeleceu paradigmática jurisprudência no sentido de que violações procedimentais significativas podem acarretar a inconstitucionalidade de dispositivos normativos quando “alteram de forma substancial o processo de constituição da vontade no seio das Câmaras”, reconhecendo a instrumentalidade das normas regimentais para a salvaguarda de valores constitucionais superiores, como o pluralismo político.
No ordenamento alemão, o Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Federal) desenvolveu a figura do Organstreit (conflito entre órgãos) como instrumento processual que possibilita a parlamentares minoritários questionarem judicialmente procedimentos legislativos acelerados que comprometam a apreciação adequada de proposições. Tal mecanismo foi concretamente utilizado em 2021, quando integrantes da bancada do Die Linke impugnaram a tramitação acelerada de complexo pacote financeiro, argumentando insuficiência temporal para análise adequada, sustentando que “restaram apenas dois dias úteis para examinar projetos volumosos”, o que configura trâmite inconstitucional por violação aos direitos parlamentares e ao princípio democrático.
A consequência objetivamente verificável da compressão procedimental analisada se manifesta na deterioração qualitativa do produto legislativo municipal. A insuficiência temporal para análise técnica aprofundada potencializa exponencialmente os riscos de aprovação de dispositivos normativos eivados de inconsistências técnicas, antinomias sistemáticas ou vícios de inconstitucionalidade.
Daí é que a elaboração normativa qualificada pressupõe necessariamente temporalidade adequada, interlocução dialética entre diferentes perspectivas e aperfeiçoamento textual gradativo – elementos incompatíveis com a dinâmica de aprovação acelerada que se institucionalizou na prática legislativa mariliense.
Em suma, a preservação da integridade deliberativa do processo legislativo municipal, sem comprometimento da eficiência decisória, demanda reformulações normativas específicas. Apresentam-se, neste contexto, proposições concretas direcionadas ao aperfeiçoamento do sistema procedimental:
- Delimitação normativa objetiva do conceito jurídico indeterminado “extrema urgência”, mediante definição taxativa ou exemplificativa das hipóteses de aplicabilidade, circunscrevendo sua utilização a circunstâncias excepcionais objetivamente verificáveis;
- Institucionalização da exigência de fundamentação escrita circunstanciada e publicização imediata quando da invocação do procedimento de urgência, viabilizando controle social efetivo;
- Previsão de vedação expressa à aplicação do procedimento de urgência em matérias de especial complexidade ou relevância estrutural para o município, como alterações à Lei Orgânica, ao Código Tributário Municipal, ao Plano Diretor e demais normas estruturantes;
- Implementação de mecanismos de transparência ativa relativos à utilização do instituto da urgência, mediante relatórios estatísticos periódicos e justificações consolidadas;
- Fortalecimento institucional das prerrogativas minoritárias e dos instrumentos de participação popular no processo legislativo, equilibrando a equação democrática.
Dito isso, compete à sociedade civil organizada, às instituições de controle, aos veículos de comunicação social e aos parlamentares comprometidos com a integridade institucional a vigilância permanente sobre o processo de elaboração normativa, assegurando sua conformidade com os princípios constitucionais estruturantes do Estado Democrático de Direito.
O processo legislativo transcende a dimensão meramente procedimental, configurando-se como núcleo essencial da legitimidade democrática representativa. A normatividade jurídica somente adquire autêntica legitimidade quando resultante de procedimento deliberativo transparente, pluralista e respeitoso das garantias procedimentais estabelecidas.
A OSCIP MATRA – Marília Transparente, no cumprimento de sua missão institucional de promoção da transparência e do controle social sobre os poderes públicos, permanecerá monitorando sistematicamente os procedimentos legislativos municipais, produzindo análises críticas fundamentadas e contribuindo para o fortalecimento das instituições democráticas locais.
Porque Marília tem dono, cidadão: VOCÊ!