A CÂMARA MUNICIPAL E A “PEDALADA FISCAL” PARA CIMA DO DAEM – II

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No domingo passado em artigo publicado nesta mesma coluna, a Matra criticou a forma como por cerca de três décadas recursos do DAEM (e do IPREMM) vêm sendo utilizados, disfarçadamente, para financiar despesas gerais do Município, deixando de servir normalmente às finalidades dessas autarquias. Ficou ali esclarecida a reprovável conduta mediante a qual Prefeitura deixa de efetuar, no tempo e modo devidos, pagamentos de taxas remuneratórias pela utilização de serviços de água e esgoto devidas ao DAEM, para depois, no futuro, confessar a dívida e parcelar seu montante. Parcelamento este que num dado momento, deixa de ser honrado e acaba sendo englobado em outro futuro parcelamento. Conduta aliás, semelhante à que utilizada para o caso do IPREMM. Enfim, a Matra trouxe à luz essas verdadeiras “operações de crédito” não autorizadas (as “pedaladas fiscais”) e com um detalhe, essas pedaladas encarecem muito para o cidadão contribuinte pagar, por conta dos juros sobre o atraso e sobre as parcelas futuras, um verdadeiro absurdo.

No mesmo texto a Matra teceu críticas à forma proposta no Projeto de Lei n° 135/2018 (em tramitação na Câmara), para quitar os débitos mediante DAÇÃO EM PAGAMENTO de vários poços de captação de água os quais a rigor, já fazem parte do sistema de captação de água executado pelo mesmo DAEM há bastante tempo. E a OSCIP argumentou que com base na legislação que rege essa autarquia municipal, esses poços já integrariam o patrimônio dela, restando apenas pendentes as respectivas formalizações das transferências de titularidade. Cabe agora jogar luz sobre o que diz a legislação invocada pela Matra.

Inicialmente devemos partir da premissa segundo a qual um dos traços distintivos do “direito privado” (aqui visto como o conjunto de normas jurídicas que regem os interesses particulares), em relação ao “direito público” (aqui visto como o conjunto de normas jurídicas que regem os interesses do Estado), está em que no direito privado o particular pode fazer tudo o que a lei não proíbe, enquanto que no direito público o administrador só pode fazer o que a lei autoriza. Assim, para se projetar, executar obras, autorizar licitações, etc. – que digam respeito aos serviços de água e esgoto – é preciso que o gestor público esteja autorizado por lei, caso contrário o ato é NULO. E neste caso, quem está autorizado por lei é o Diretor Executivo do DAEM. Se a Prefeitura toma a frente e o faz, descumpre a lei e o autor do descumprimento se sujeita às consequências. Mas como do descumprimento da lei surgiram resultados materiais que podem ser aproveitados pelo DAEM (construção de poços, por exemplo) esses resultados devem ser incorporados ao patrimônio deste, porque é assim a vontade da lei.  Agora vamos “trocar em miúdos” para maior compreensão de todos.

Certamente motivados pela constatação da expansão urbana que Marília já experimentava há mais de cinquenta anos, nossos antigos gestores olharam para o futuro e então julgaram necessário a criação do DAEM, o que explica a edição da Lei n° 1369/66. Essa lei trouxe uma inovação importante para a cidade: antes dela os serviços de água e esgoto eram prestados pela “administração pública DIRETA” do Município (representada, digamos assim, pela Prefeitura) sem especialização.  Esse modelo de gestão foi rompido por essa lei que inaugurou um novo modelo mediante o qual os serviços passaram a ser prestados, “COM EXCLUSIVIDADE (art, 2º)”, pela administração pública INDIRETA do Município (representada, no caso, pelo DAEM). E para viabilizar a mudança de modelo, o legislador previu uma REGRA DE TRANSIÇÃO, mediante a qual determinou que o patrimônio inicial do DAEM fosse “constituído de todos os bens móveis e imóveis atualmente usados no sistema público de água e esgotos, sanitários, os quais lhe estarão entregues após inventário procedido pela Comissão a que se refere o art. 31 desta lei, sem qualquer ônus ou compensações e independentemente de quaisquer formalidades” (art.17). E a partir dessa lei, por deter a exclusividade dos serviços, o normal era que somente essa autarquia projetasse e executasse obras correspondentes aos serviços de fornecimento de água e coleta de esgoto, e que não que houvesse usurpação de competências.

É verdade que vinte e sete anos depois houve uma reestruturação do DAEM pela Lei nº 3926/93. Mas o modelo de gestão, inaugurado em 1966, foi expressamente mantido. Afinal esta última lei declarou, que apenas estavam “revogados os dispositivos em contrário” inclusive quanto à lei anterior (Lei n° 1369/66) – o que significa que os dispositivos que não contrariassem a lei nova estariam mantidos. Logo, qualquer atividade praticada da administração DIRETA que invada a esfera de atribuições legais da autarquia (DAEM) é ilegal. Lembrando que aquela REGRA DE TRANSIÇÃO já mencionada (Lei n. 1369/66, art. 17) – que já deveria ter cumprido o seu papel com a transferência dos poços – em nada contrariou a lei nova e permanece em vigor.

Mas há quem pergunte: E se a Prefeitura construiu poços mesmo depois da vigência da lei de 1966, como fica? Ela perde o dinheiro investido? Não! Primeiro por que construção desses poços teria decorrido de atos ou omissões ilegais, pois caso contrário não mais haveriam poços que não integrassem o patrimônio do DAEM. Segundo porque a própria lei prevê transferências de recursos à autarquia em casos de necessidade, o que não é nenhuma novidade. Logo, se as sucessivas gestões que passaram pela Prefeitura foram descumprindo a lei, o melhor a fazer é reparar o erro e passar logo os poços ao DAEM, sem quaisquer ônus como recomendou o legislador três décadas atrás, para evitar confusão de patrimônio.

Acresce lembrar também que desde 1966 é o Diretor Executivo quem tem a competência exclusiva para autorizar a realização de “concorrências públicas, coletas de preços, ajustes e acordos para o fornecimento de materiais e equipamentos, ou prestação de serviços ao DAEM”. E essas competências foram mantidas pela lei nova que até fala, claramente, em “licitações”. Mas o que não se compreende é a razão de a Prefeitura ter continuado a atropelar as funções dos diretores executivos que por lá passaram, invadindo a esfera de competências da autoridade máxima da autarquia e violando a legislação local por tanto tempo e bem debaixo dos olhos das instituições de controle externo (Câmara Municipal; TCE e Ministério Público). Afinal, o legislador em nenhum momento atribuiu competências ao Diretor Executivo como mera recomendação. “A lei não contém palavras inúteis”, diz uma importante regra de interpretação.

Se porventura o investimento a ser feito ultrapasse às possibilidades financeiras do DAEM – caso, por exemplo, da perfuração de poços profundos ou das obras do tratamento do esgoto – a solução foi fornecida pelo próprio legislador: transferência de recursos do orçamento geral do Município por meio de “auxílios, subvenções, transferências correntes e de capital, e de créditos adicionais”. Afinal se o Município transfere recursos até para a CODEMAR (para que esta pague funcionários mesmo sendo ela sociedade de economia mista com sócios e visa lucros), por que razão não o faria para uma autarquia, que integra a estrutura administrativa do Executivo e não visa lucro?

Como podem ver, muito chão ainda tem que ser percorrido para que Marília preste mais atenção às leis que edita.

Esta é mais uma das muitas colaborações prestadas voluntariamente pela MATRA para que todos compreendam o que significa viver num Estado Democrático de Direito. Pois Marília tem dono: VOCÊ!