O prefeito de Marília escolheu um verbo dramático para o Decreto 14.601: intervir. Mas o texto, ao proclamar que a Agência Municipal de Água e Esgoto (AMAE) é “absolutamente omissa”, escancara a verdadeira tragédia administrativa: a concessão foi firmada sem regulador efetivo e agora recebe uma “intervenção” que não reforma a causa do desastre, apenas a perpetua.
A AMAE — criatura da própria Prefeitura — nunca foi uma agência reguladora no sentido que a Lei 11.445/2007 exige e que o Supremo Tribunal Federal consagrou nas ADIs 6.033 e 6.276. Ela opera sem diretoria colegiada independente (o comissário-geral nomeia os demais membros), sem mandatos fixos, sem quarentena, sem organograma aprovado, sem autonomia financeira e com um exíguo trio técnico para fiscalizar um contrato bilionário.
Essa carência não é detalhe: o art. 11, III, do Marco do Saneamento faz da existência prévia de entidade reguladora condição de validade de qualquer concessão. Em Marília, assinou-se o contrato antes de erguer o fiscal; edificou-se o telhado sem fundação.
Quando o prefeito suspende as funções da AMAE e entrega o serviço ao seu secretário de Administração, não está corrigindo o erro — está certificando-o. O Município admite que a casa regulatória ruiu, mas, em vez de reconstruí-la, move alguma outra coisa de lugar: troca a sigla de uma agência fantasiosa por um interventor sem equipe, metas públicas ou orçamento próprio. A RIC Ambiental continua operando, faturando tarifas e, segundo o próprio decreto, devendo seguros, licenças ambientais e comprovação de investimentos. A única mudança concreta foi a transferência da incompetência de um gabinete para outro.
Nada no decreto impõe sanções pelas irregularidades já reconhecidas; nada obriga a concessionária a devolver valores, corrigir serviços ou submeter reajustes a parecer técnico. Em dois meses, não apareceu um relatório de auditoria, um cronograma de obras, uma audiência pública. O interventor, investido de poderes monárquicos mas despido de estrutura, tornou-se guarda-chuva simbólico sobre a mesma tempestade. A “intervenção” garante à concessionária o melhor dos mundos: fluxo de caixa intacto, risco regulatório zero e um poder público que confessa não ter como fiscalizar, mas também não se dispõe a aprender.
Se o Município leva a sério a lei e o interesse público, o roteiro é simples: suspender a execução do contrato até que exista regulação legítima; Erigir por lei, não por decreto, uma agência com diretoria colegiada aprovada pela Câmara, mandatos escalonados, quadro técnico concursado, quarentena para seus dirigentes e orçamento próprio financiado por taxa de regulação; publicar todos os relatórios de auditoria e abrir audiência sobre tarifas, investimentos e metas ambientais. Daí, só então decidir se a concessão se mantém, se precisa de aditivo ou se deve ser rescindida.
Intervir porque o regulador falhou e, simultaneamente, recusar-se a reformá-lo é o ápice da contradição: governa-se para admitir a própria renúncia a governar. Enquanto a Prefeitura insistir nesse teatro administrativo, a população seguirá com torneiras intermitentes, tarifas opacas e uma agência fictícia; a concessionária, com receitas blindadas; e o decreto, com o destino dos espetáculos de temporada: manchete ruidosa, utilidade nula.
Marília merece mais do que um verbo forte em papel timbrado. Merece a reconstrução do alicerce regulatório que a lei exige e que o serviço público impõe. Até lá, a chamada intervenção permanecerá o que é: uma confissão de impotência travestida de ação.
Porque Marília tem dono: VOCÊ!