Tramitam na Câmara dos Deputados iniciativas que tentam organizar o uso de recursos públicos com a primeira infância, período que vai dos 0 aos 6 anos. Atualmente, os dados são esparsos e pouco detalhados, segundo relatório apontado pela CGU (Controladoria Geral da União).
Sistematizar a origem e o destino do dinheiro aplicado em programas para essa fase da vida é importante para diagnosticar problemas na oferta de direitos constitucionais e avaliar resultados de políticas públicas.
Neste texto, o Lab Nexo, laboratório de jornalismo digital desenvolvido pelo Nexo Jornal em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal e apoio da Porticus América Latina e do Insper, mostra os projetos que lidam com o orçamento destinado à primeira infância e explica as iniciativas de organizações não governamentais que lidam com o tema.
A falta de transparência de gastos
Desvendar o orçamento da primeira infância é uma atividade constante para a Frente Parlamentar Mista da Primeira Infância, criada ainda em 2013 com o objetivo inicial de viabilizar a criação do Marco Legal da Primeira Infância, aprovado em 2016. Trata-se de uma tarefa árdua, segundo Heloisa Oliveira, diretora de Relações Institucionais da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal.
“No Marco Legal da Primeira Infância, o artigo 11, parágrafo segundo, diz que é dever da União e dos entes federados informar com transparência os recursos investidos na primeira infância”, disse Oliveira.
Agora, o trabalho suprapartidário da Frente Parlamentar Mista da Primeira Infância, a nível federal, tem o objetivo de desvendar o orçamento público, no intuito de identificar o quanto, especificamente, é investido na primeira infância.
“A primeira iniciativa da Frente Parlamentar foi provocar o Ministério da Economia para que dissesse o quanto se destina aos outros ministérios para o tema. Um outro ponto é a destinação na Lei Orçamentária e em tudo que ela envolve — Plano Plurianual e Lei de Diretrizes e Bases (LDB) — que deveria fazer essa identificação”, afirmou Marta Volpi, assessora de políticas públicas da Abrinq (Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos).
Segundo um relatório de avaliação realizado em 2020 pela CGU (Controladoria Geral da União) com o objetivo de verificar o cumprimento do Marco Legal da Primeira Infância, há fragilidades na coleta de dados do Orçamento público federal e falhas na articulação do governo.
Foram analisadas 117 ações governamentais de 2017 a 2020. Em 103 (88%), não foi possível qualificar a verba destinada à primeira infância e apenas 32 ações (27%) foram identificadas como exclusivas para crianças de 0 a 6 anos de idade. Em nota, a CGU concordou que a falta de dotações orçamentárias específicas torna a busca pela identificação do montante para primeira infância uma tarefa difícil.
Já o Ministério da Economia justifica que a falta de detalhamento sobre o que é gasto ou investido especificamente com a primeira infância se deve à transversalidade das políticas públicas que atendem a essa população.
Por que ter um orçamento da Primeira Infância
O diagnóstico do orçamento público é central, sendo determinante para afirmar se há avanços nas políticas públicas. “Sem diagnóstico, é difícil falar. Não dá para argumentar sem considerar cada município. A tendência é achar que a verba nunca é suficiente; quando se tem uma demanda social, são necessários tantos recursos que, por fim, não é o suficiente”, afirmou Marta Volpi.
A assessora da Abrinq acrescenta ainda um exemplo ao qual a fundação tem realizado estudos de balanços trimestrais da assistência social. “O que a gente vem acompanhando do orçamento da assistência social é que tudo o que não é recurso obrigatório está diminuindo; especialmente os destinados às crianças e adolescentes”, disse.
Do ponto de vista da gestão pública, o economista Naercio Menezes Filho afirma que, além de se preocupar com um orçamento robusto, é necessário uma gestão de qualidade para se obter resultados. Segundo ele, com um orçamento espalhado, o recurso fica parado ou é desperdiçado, e não atinge o objetivo final que seria atender as crianças.
“É muito difícil reunir tudo [do orçamento público] e obter um número exato, talvez seja impossível. Na parte de gestão, tem muito o que ser feito para melhorar o resultado e o impacto, porque é necessário que esses recursos sejam utilizados para melhorar o desenvolvimento infantil e o aprendizado das crianças”, disse.
Identificar o investimento à primeira infância
De acordo com Heloísa Oliveira, o caminho para deixar o investimento evidente no orçamento público envolve o esforço das capitais e gestores em relação a informar o orçamento de modo explícito, como a expressão Programa Primeira Infância. “Porque se eu faço isso a partir do Plano Plurianual, isso vai para a Lei de Diretrizes Orçamentárias, e depois vai para a Lei Orçamentária. Então seria possível apurar a partir daqueles itens. O caminho para dar essa transparência é seguir esse ciclo orçamentário”, afirmou.
Existe, atualmente, o OCA (Orçamento Criança e Adolescente), que discrimina o investimento destinado a crianças e adolescentes de 0 a 18 anos com uma metodologia criada por organizações como a Abrinq, o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e o Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos). Segundo Oliveira, criar marcadores dentro dele facilitaria a obtenção de um recorte para a primeira infância e, com isto, seria possível identificar o investimento nesse público específico.
“Esse é um processo que a gente está analisando, e buscando caminhos sem mudar a estrutura de contas públicas brasileira. Não dá para você pensar em mudar. No entanto, desenvolver mecanismos e sinais dentro desse sistema de contas públicas nos permite apurar com mais precisão o que de fato é investido na primeira infância: tanto na União, estados e municípios”, afirmou.
Para Marta Volpi, o trabalho de identificar o investimento exclusivo e não exclusivo, junto à Frente Parlamentar, é delicado, já que é necessário fixar uma metodologia em razão do recorte dentro de uma faixa etária específica.
“O que a Fundação Abrinq trabalha atualmente [de 0 a 18 anos], será necessário fazer um recorte para 0 a 6 anos. No momento ainda não tem uma metodologia, já que está em fase de estudos e teste, e de identificar como vai ser feito”, afirmou.
A atenção integral à primeira infância
Em 2016, foi criado o Programa Criança Feliz, que visa promover e acompanhar o desenvolvimento integral da criança na primeira infância por meio de visitas domiciliares desde a gestação da mãe. O programa atende famílias de todo o país por meio do Cadastro Único. Segundo o governo, para o programa Criança Feliz, em 2020, a despesa liquidada custou aproximadamente R$ 328 milhões.
Segundo o Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), que vem realizando análises do Orçamento Criança e Adolescente desde 2019, foram empenhados, na verdade, R$208,71 milhões em 2021, considerando a inflação de janeiro e junho.
Em nota, o Instituto explica que o governo federal apenas separou ou reservou o recurso, realizou a licitação de algum contrato ou tem a obrigação de pagar por um serviço, obras ou bem material. O ideal seria empenhar o total do Orçamento antes do fim do ano, mas foi empenhado ao menos 50% do Orçamento público federal no programa.
Segundo o Inesc, outro problema é que o Criança Feliz se confunde com a subfunção Assistência à Criança e ao Adolescente, que hoje tem quase todo o recurso relacionado à política de Atenção Integral à Primeira Infância.
Em resposta, o Ministério da Cidadania afirmou que tem trabalhado sistematicamente para fortalecer o programa Criança Feliz e informou que não houve decréscimo no orçamento destinado às políticas. Segundo o ministério, o programa tem a maior dotação orçamentária em 2021, cerca de R$445,74 milhões, para execução da política intersetorial.
A busca pelo orçamento da criança
Foi aprovado, em setembro de 2021, pela Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados, o Orçamento Criança – Projeto de Lei 3.826/19 – elaborado pelo deputado Luiz Lima (PSL-RJ). A proposta tem o intuito de esclarecer e qualificar os gastos orçamentários para a primeira infância. O projeto prevê ainda que o Poder Executivo será responsável pelo tratamento dos dados, e precisará produzir um relatório analítico para avaliar as gestões públicas. O projeto aguarda ainda o parecer da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.
Há também o Projeto de Lei 167/21, da Deputada Paula Belmonte (Cidadania-DF), para criação do relatório exclusivo OPI (Orçamento da Primeira Infância), que tem o intuito de fiscalizar o orçamento público na área da primeira infância.
Segundo a proposição, ficará ao encargo do Poder Executivo informar a execução detalhada do orçamento anual. O projeto de lei ainda menciona que, para elaboração do relatório, seja adotada a metodologia do OCA, que estima o orçamento aplicado nos estados e municípios.
A proposta foi anexada ao Projeto de Lei 6.524/2019, do Deputado Leandre (PV-PR), Carmen Zanotto (Cidadania-SC), Aline Gurgel (Republicanos-AP) e Daniela do Waguinho (MDB-RJ), que institui o Sistema Nacional de Informações da Primeira Infância (Snipi). O projeto tem o intuito de sistematizar, isto é, criar um caminho único para visualizar as informações sobre as políticas públicas de primeira infância, como também informar orçamento executado na área. Para seguir na Câmara, o projeto precisa ainda passar pela Comissão de Finanças e Tributação.
*Fonte: Nexo Jornal.
**Imagem meramente ilustrativa.