Revisão Opaca: ausência de controle social adia decisões sobre o zoneamento

Capa Matra (6)

Em outubro de 2024 a prefeitura de Marília assinou um contrato de R$ 396 mil com a Geo Brasilis Consultoria para revisar a Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo, prevendo a conclusão em 180 dias. A iniciativa, um passo decisivo para modernizar e racionalizar o crescimento urbano, ganhou contornos menos auspiciosos quando, em março último, a OSCIP MATRA – Marília Transparente acionou a Lei de Acesso à Informação e perguntou, formalmente, em que estágio se encontrava o trabalho. A resposta oficial trouxe anexos, justificativas e um dado que se impôs sobre todos os outros: o município aposta agora em setembro de 2025 como nova data de entrega. A postergação convoca uma reflexão sobre as engrenagens que travaram o processo.

Não houve catástrofe técnica ou ausência de dados. O ponto nevrálgico é político-institucional. O Conselho Municipal de Habitação e Política Urbana — órgão criado justamente para assegurar a gestão democrática do solo — perdeu quórum ao fim de 2024 e jamais foi recomposto. Sem o colegiado, não há chancela para diagnósticos, nem audiências públicas, nem legitimação das minutas de lei. Acrescente-se a isso a sucessão de chefias após a transição de governo, que rearranjou equipes, e ainda a suspensão temporária de contratos auxiliares, congelados por decisão judicial e retomados apenas este ano — e teremos o quadro completo de uma revisão que patina não por ausência de verba ou know-how, mas de governança.

Enquanto a grande reforma espera, o micro-zoneamento avança por atalho. Ao longo de 2024, a Câmara aprovou remendos pontuais convertendo áreas verdes em corredores de comércio, alterando gabaritos e flexibilizando usos sem análise sistêmica. Cada exceção se isola como solução particular, mas o conjunto degrada a coerência normativa e multiplica a probabilidade de litígios. Legislar desse modo é abrir mão da previsibilidade urbana que atrai investimentos e preserva qualidade de vida.

O custo democrático de todo esse atraso é alto. A prefeitura só detalhou o que vinha ocorrendo depois da provocação da sociedade civil; relatórios técnicos permanecem restritos, o cronograma revisado, embora já aprovado internamente, não foi divulgado de forma acessível, e a página eletrônica prometida para hospedar documentos segue fora do ar. Quando o acesso à informação depende de ofício protocolado e prazos legais, a transparência se transforma de dever espontâneo em concessão burocrática, corroendo a confiança do cidadão na gestão do espaço onde vive e trabalha.

Há, contudo, tempo, ainda que exíguo, para resgatar a legitimidade da revisão urbanística. A recomposição imediata do Conselho de Habitação e Política Urbana, com representantes paritários do poder público e da sociedade civil, é condição de partida: sem esse fórum, qualquer versão da nova lei nascerá vulnerável à impugnação judicial por vício de origem. Audiências públicas verdadeiramente deliberativas — anunciadas com antecedência, transmitidas online e arquivadas para consulta — podem reequilibrar um debate que até agora correu em gabinetes. Por fim, um painel digital simples, exibindo etapas concluídas, valores liquidados e a estimativa de setembro de 2025, sinalizaria compromisso com a clareza e permitiria que qualquer cidadão acompanhasse, em tempo real, o avanço ou retrocesso do cronograma.

Contudo, desde já se verifica um movimento da municipalidade em sentido contrário. Em resposta às pressões para recompor o Conselho, a Prefeitura não fará um chamamento público por intermédio do Diário Oficial: prefere contatar diretamente um rol de entidades arroladas no Plano Diretor, desenhando, na prática, um colegiado sob medida. A escolha contorna a ampla concorrência e atropela o princípio da gestão democrática consagrado no Estatuto da Cidade, justamente quando o órgão recuperaria fôlego para monitorar a execução do Plano Diretor, fiscalizar os recursos do FUNDURB – Fundo de Desenvolvimento Urbano e emitir pareceres sobre projetos de lei e instrumentos urbanísticos. Sem um processo transparente e plural, o Conselho corre o risco de nascer capturado, incapaz de convocar audiências com credibilidade, debater diretrizes para áreas públicas ou encaminhar prioridades ao próximo Programa de Metas. O resultado é óbvio: a revisão do zoneamento seguirá vulnerável à suspeita de jogo marcado — e Marília perderá a chance de construir consenso legítimo sobre o uso do seu próprio território.

Daí é que se percebe que zoneamento não é detalhe: define onde moramos, como nos deslocamos, quais áreas verdes sobreviverão, em que bairros surgirão indústrias ou corredores de ônibus por exemplo. Revisá-lo exige saber técnico, mas também, e sobretudo, legitimidade política, um atributo que só floresce quando informação circula e vozes divergentes dialogam antes da decisão final. O atraso revelado pela Lei de Acesso à Informação expôs a fragilidade dessa engrenagem em Marília; a solução, paradoxalmente simples, está na mesma chave: devolver o processo à luz pública, convidar de volta a sociedade organizada e cumprir, sem novas prorrogações, a palavra empenhada. Setembro de 2025 será tarde ou ainda em tempo, dependendo exclusivamente da rapidez com que a prefeitura transforme protocolos em prática aberta de governo. Porque Marília tem dono, cidadão: VOCÊ!